Por que o convívio escolar é o ponto de partida para a formação de crianças acolhedoras, solidárias e preparadas para a diversidade?
O processo de socialização — entendido como a aprendizagem de viver com o outro — é a essência da construção humana desde os primeiros anos de vida.
Ao ingressar na escola, a criança experimenta, muitas vezes pela primeira vez, o desafio e a maravilha do encontro com o diferente: outras culturas, crenças, temperamentos, modos de brincar, falar e pensar.
Esse microcosmo social faz da escola muito mais do que espaço de instrução formal; ela é, como defendia Loris Malaguzzi, “um laboratório de humanidade”.
O conceito de socialização desde Froebel à contemporaneidade
A preocupação em preparar ambientes de socialização para crianças pequenas não é nova. Friedrich Froebel, pedagogo alemão criador do jardim de infância no século XIX, foi pioneiro ao valorizar, no espaço escolar, jogos e interações como cenários estruturantes não só do brincar, mas da convivência ética, do respeito mútuo e do desenvolvimento afetivo.
Para Froebel, as atividades em grupo e o “brincar coletivo” eram fundamentais para o despertar da consciência do outro, do cuidado e da solidariedade — fundamentos essenciais para o equilíbrio emocional e social, alicerces do cidadão consciente.
Piaget, por sua vez, observou que é na escola — e especialmente no convívio com colegas — que a criança sai de um pensamento centrado em si mesma (egocentrismo infantil) para a construção da alteridade.
No relacionamento com o grupo, há descobertas cruciais: o valor do diálogo, a necessidade da escuta, a importância das regras de convivência e a percepção de que o mundo comporta diferenças e contradições.
Vygotsky, fundador da psicologia histórica e cultural, aprofundou ainda mais a dimensão social do desenvolvimento. Sua teoria nos mostra que “todas as funções psicológicas superiores se originam nas relações entre as pessoas”.
Na sala de aula, o pequeno é instigado a pensar com e pelo outro; aprende novas formas de linguagem, de resolução de conflitos, de negociação e partilha. A Zona de Desenvolvimento Proximal, conceito central de Vygotsky, revela como a mediação social é, na infância, o motor do crescimento cognitivo e afetivo.
Montessori acrescenta: “A escola é uma comunidade em miniatura”. Seus ambientes preparados, materiais compartilhados e rotinas colaborativas expressam sua crença de que a independência surge do interdependente — da arte de viver junto e aprender não só conteúdo, mas os valores do respeito, cuidado e empatia.
Loris Malaguzzi, criador da abordagem de Reggio Emilia, inova ao tratar a escola infantil como um espaço de construção democrática, onde cada criança é vista como cidadã, protagonista e portadora de múltiplas linguagens. Segundo ele, “ninguém cresce sozinho, mas sim junto dos outros”. A escola-pluralidade favorece a construção de identidades abertas, tolerantes e participativas.
Escola como espaço de encontro, reconhecimento e acolhimento
Na infância, a diversidade é algo concreto: está nos traços, nas roupas, nas brincadeiras, nas línguas que se misturam, nos costumes trazidos de casa.
O ambiente escolar — quando verdadeiramente acolhedor — torna-se local de descoberta, respeito e fascínio pelo outro. Experiências inovadoras, tanto no Brasil quanto em experiências internacionais, enfatizam a centralidade dos projetos coletivos, rodas de conversa, contação de histórias, festas multiculturais, jogos em grupo e projetos de resolução de conflitos, temas que atravessam o currículo.
A pedagogia de Reggio Emilia vai além ao envolver a comunidade escolar (família, educadores, funcionários, vizinhança), tornando a diferença um valor vivo.
Os ateliês, painéis de documentação e espaços polivalentes não apenas permitem, mas celebram as diferenças, tornando-as visíveis e fonte de aprendizado. George Forman e Leila Gandini, ao analisarem o cotidiano em Reggio, destacam como a escuta ativa das crianças — suas perguntas, histórias, ideias — transforma o coletivo.
As pequenas/grandes lições da convivência
A escola é, muitas vezes, o primeiro lugar onde a criança descobre que o conflito faz parte da vida, e que a convivência democrática exige lidar com frustrações, esperar sua vez, ceder, argumentar, discordar, cuidar do sentimento do outro.
São nessas experiências que nascem as primeiras sementes do respeito às diferenças — sejam culturais, raciais, físicas, linguísticas, religiosas ou geracionais.
As pesquisas atuais e as orientações da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) reforçam que a socialização deve perpassar toda a rotina escolar — não só nas aulas, mas no recreio, nos projetos extracurriculares, nas pequenas convivências diárias.
O brincar coletivo, as atividades em dupla, o trabalho em grupo, o uso de materiais compartilhados, as assembleias infantis, o próprio exercício da escuta ativa e da resolução negociada de tensões são práticas centrais para o desenvolvimento integral da criança.
O professor-mediador: presença inspiradora na construção do coletivo
Nenhuma socialização acontece ao acaso; ela é planejada, estimulada e sustentada por educadores atentos, afetivos e formados para a escuta ativa e o acolhimento.
O professor da Educação Infantil é antes de tudo mediador: intervindo nas primeiras disputas, ajudando a nomear emoções, ensinando estratégias de resolução de situações difíceis, propondo desafios de convivência ética e ensinando, pelo exemplo, o respeito à pluralidade.
Malaguzzi dizia que o bom educador é aquele que “ouve cem idiomas das crianças” e está preparado para ajudar cada uma a se ver e ser vista no grupo, fortalecendo autoestima e sentimento de pertencimento. Piaget pontua que o diálogo, e não o autoritarismo, é que produz moralidade autônoma. Vygotsky, na mesma linha, defende que a mediação sensível do adulto eleva o patamar do convívio e do aprendizado.
Froebel já reconhecia nos círculos de diálogo, nas canções, nas brincadeiras em grupo e na observação da natureza momentos preciosos para desenvolver a solidariedade, o espírito de equipe e a noção de comunidade.
Enfrentando desafios da vida real: inclusão, equidade e respeito
Em países marcados pela diversidade — como o Brasil — a socialização na escola é também oportunidade de superação de preconceitos, barreiras sociais e desigualdades históricas.
Projetos que envolvem famílias de diferentes origens, valorização de brincadeiras tradicionais, respeito às diferentes crenças e o acolhimento de alunos com necessidades especiais são exemplos concretos desse compromisso.
O ambiente escolar precisa ser intencionalmente anti-preconceituoso, inclusivo — onde a diferença é valorizada porque desafia, amplia horizontes e faz crescer.
Experiências inspiradas no Reggio, Montessori e em propostas interacionistas mostram que, quando o grupo é estimulado a dialogar, a desafiar estereótipos, a experimentar novas formas de brincar e aprender, todos ganham em repertório, criatividade e humanidade.
Socializar para humanizar: conclusão
A primeira infância é etapa decisiva para formar seres humanos abertos, empáticos, tolerantes e preparados para a pluralidade do mundo.
A escola, como primeiro espaço coletivo das crianças, tem papel central e inegociável em proporcionar essa experiência transformadora. Quando socialização é vista como valor e meta, e não como acaso, constrói-se um caminho sólido rumo a uma sociedade mais justa, diversa e solidária.
Referências
Froebel, F. (1981). The Education of Man.
Piaget, J. (1998). O julgamento moral na criança.
Vygotsky, L. S. (1991). A formação social da mente.
Montessori, M. (2017). A criança.
Malaguzzi, L. (1999). As cem linguagens da criança.
Edwards, C., Gandini, L., & Forman, G. (1999). As cem linguagens da criança.
BNCC (2017). Base Nacional Comum Curricular.