Brincar é coisa séria: por que toda escola precisa valorizar o lúdico?

Brincar é coisa séria: por que toda escola precisa valorizar o lúdico?

O papel do brincar na educação infantil: desenvolvimento integral, criatividade e construção da aprendizagem nas experiências lúdicas.


Brincar é a principal forma de expressão e de aprendizagem das crianças pequenas.

Mais do que um passatempo ou uma atividade para preencher o tempo livre, o lúdico é reconhecido por múltiplos estudiosos e por documentos internacionais — como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU — como direito fundamental e eixo estruturante da infância.

Na sua obra sobre a abordagem de Reggio Emilia, Carolyn Edwards, Leila Gandini e George Forman destacam que o brincar é o “trabalho” primordial da criança: por meio dele, ela constrói sentidos, descobre o mundo e a si mesma, elabora suas emoções e inicia um processo de socialização que será base para toda a vida.

Em Reggio Emilia, brincar está no cerne do currículo; cada espaço, material e tempo são pensados para favorecer investigações, experimentações e descobertas possíveis apenas a partir da ludicidade.

No contexto brasileiro, embora haja avanços — como a diretriz de que a brincadeira seja indissociável dos processos de cuidar e educar na creche e na pré-escola — ainda há resistências culturais a superar.

Muitas vezes, o brincar é visto como atividade “menor”, secundário diante dos momentos ditos “formais” do ensino das letras e números. Tal visão, segundo Gandini, limita drasticamente o potencial das crianças, que aprendem mais e melhor quando estão engajadas de corpo inteiro, movidas pelo desejo e curiosidade.

O que a criança aprende quando brinca?


Por trás de cada brincadeira, existe um mosaico de aprendizagens simultâneas. Ao montar blocos, a criança desenvolve coordenação motora, noção de espaço, criatividade e capacidade de resolver problemas.

No faz de conta, exercita imaginação, regras sociais, linguagem, expressão emocional e compreensão de papéis culturais. Ao brincar em grupo, aprende a negociar, ceder, liderar, resolver conflitos, argumentar e escutar — competências cruciais não só para a escola, mas para a vida cidadã.

Na abordagem de Reggio Emilia, brincar é profundamente respeitado como linguagem da infância. Edwards relata experimentos em que crianças pequenas, em contato com materiais abertos (argila, água, tintas, panos, elementos naturais), projetam hipóteses, testam limites, articulam perguntas e compartilham descobertas com colegas e adultos.

É nesse fazer coletivo que emergem competências cognitivas e sociais essenciais, validadas também por referências de Vygotsky: a zona de desenvolvimento proximal se concretiza quando a criança, em interação lúdica, vai além do que conseguiria sozinha.

Além disso, estudos internacionais afirmam que crianças que brincam mais possuem maior capacidade de concentração, resiliência emocional, melhor desempenho em competências linguísticas e lógico-matemáticas, além de maiores índices de autonomia e autoestima.

Políticas, ambiente e currículo: a escola que valoriza o brincar


Para que a ludicidade seja de fato eixo do currículo — e não mero discurso —, é preciso revisitar práticas, repensar espaços e investir em formação continuada de equipes. Isso inclui:

Ambientes ricos e acolhedores: Em Reggio Emilia, cada ambiente é pensado como “terceiro educador”. Espaços abertos, iluminação natural, cantinhos de brincar, paredes aproveitadas para exposições, materiais de diversas texturas, formas e cores convidam à experimentação.


Materiais não estruturados: Ao invés de brinquedos prontos, a preferência é por elementos que possam ser reinventados a cada dia (caixas, tecidos, blocos, materiais da natureza), ampliando a criatividade.


Tempo de qualidade: O brincar precisa de tempo amplo, não apressado, livre de interrupções constantes. Propostas longas favorecem exploração profunda, continuidade dos projetos, envolvimento e protagonismo da criança.


Documentação pedagógica: Inspiradas por Edwards e Gandini, muitas escolas produzem registros fotográficos, painéis e relatórios das brincadeiras, envolvendo as crianças na reinterpretação e valorização de suas próprias criações.


Integração escola-comunidade: As famílias são convidadas a compartilhar brincadeiras tradicionais, histórias de infância, brinquedos caseiros. O brincar torna-se ponte entre gerações e espaço de valorização cultural.


O docente como mediador do mundo lúdico


Em um ambiente que valoriza o brincar, o educador deixa de ser mero supervisor e assume o papel de pesquisador e mediador. Ele propõe contextos, observa cuidadosamente as descobertas, escuta as hipóteses e interesses das crianças e, a partir delas, planeja novos caminhos.

Gandini enfatiza que o professor atento é aquele que reconhece o valor de cada interação, acolhe as diferentes manifestações expressivas (do gesto à palavra, do traço à dança), planeja projetos inspirados pelo próprio brincar da turma e legitima o erro como parte do processo de crescimento.

Ao documentar, conversar e interagir, o educador torna-se parceiro do aluno — e vê nos jogos oportunidades para introdução e aprofundamento de temas da ciência, arte, sociedade e natureza.

No Brasil, experiências inovadoras inspiradas por Reggio Emilia ocorrem em escolas públicas e privadas de diversos estados, demonstrando que valorizar o lúdico não é exclusividade de países ricos: é uma escolha, uma decisão política e metodológica.

Superando desafios: brincar como ato de resistência e equidade


Em contextos de vulnerabilidade — bairros periféricos, áreas de risco, comunidades indígenas ou rurais — o brincar muitas vezes é ameaçado por fatores externos: violência, falta de espaço, excesso de rotinas “adultocêntricas”, pressão por resultados precoces.

O compromisso da escola é lutar para garantir esse direito: oferecer alternativas criativas, espaços simbólicos, resgatar brincadeiras tradicionais e inserir o lúdico no cotidiano, inclusive como estratégia de reparação e acolhimento pós-trauma.

Forman ressalta que, em Reggio Emilia, o brincar surge também como processo de inclusão: todas as crianças — independentemente de suas capacidades, origens culturais ou condições físicas — participam das experiências lúdicas, aprendendo a conviver com a diferença e a se reconhecer como sujeitos de direitos.

Brincar é aprender a viver: conclusão


Valorizar o brincar é preparar crianças para o futuro — com criatividade, autonomia, respeito, senso crítico, saúde mental e capacidade de lidar com o inesperado. Brincar é o exercício de ser pleno, de narrar e reinventar o mundo.

Escolas que entendem o brincar como valor supremo ajudam a criar sociedades mais humanas, criativas e éticas.


Como expressa Leila Gandini: “O brincar dá às crianças as cem linguagens possíveis para falar, sentir, pensar, ser.

Referências:

Edwards, C., Gandini, L., & Forman, G. (1999). As Cem Linguagens da Criança: A Abordagem de Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância.
Gandini, L. (2012). O valor do brincar: Reggio Emilia e a centralidade da experiência lúdica.
Vygotsky, L. S. (1988). A Formação Social da Mente.
BNCC (2017). Base Nacional Comum Curricular.
UNICEF/ONU (1989). Convenção sobre os Direitos da Criança.

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