Dos tablets ao faz de conta: o potencial dos recursos digitais para enriquecer experiências lúdicas na infância, sem abrir mão do contato humano, da criatividade e da cultura do brincar.
O desafio contemporâneo: brincar e tecnologia, aliados ou rivais?
É impossível discutir infância e escola do século XXI sem considerar o fenômeno da presença digital desde os primeiros anos de vida. Smartphones, tablets e aplicativos são parte do cotidiano, e muitos se perguntam: a tecnologia é uma ameaça ao brincar criativo ou pode ser parceira nessa jornada?
A resposta, como defendem grandes pensadores contemporâneos do brincar – e um olhar atento às teorias de Vygotsky, Piaget, Montessori, Malaguzzi e Froebel – está no uso pedagógico qualificado da tecnologia: promover, ampliar e enriquecer o brincar, jamais substituí-lo ou reduzir a criança a simples “usuária” de telas passivas.
A pedagogia do brincar no digital: o que sustentam os clássicos
Friedrich Froebel, já no século XIX, intuía que ferramentas inovadoras são, sim, importantes mediadoras do aprender, desde que a relação com o concreto e o simbólico permaneça forte.
Maria Montessori, ao preparar ambientes ricos e promover a autonomia, reconhecia que instrumentos novos precisam dialogar com a experiência sensorial, a manipulação real e as relações interpessoais. Para ela, tecnologia só tem sentido se for extensão da mão, dos sentidos, da inteligência e dos afetos.
Vygotsky, ao conceber o desenvolvimento humano como resultado da internalização de instrumentos culturais e linguísticos, provavelmente veria nos recursos digitais novas “ferramentas mediadoras” capazes de ampliar as zonas de desenvolvimento proximal – desde que o adulto continue mediando, dialogando e valorizando o brincar simbólico tradicional.
Loris Malaguzzi e os estudiosos das Cem Linguagens de Reggio Emilia, como Carolyn Edwards, Leila Gandini e George Forman, apontam que tecnologias digitais, quando combinadas a ateliês, materiais não estruturados e à documentação coletiva, podem servir como suportes para narrativas visuais, registros de explorações, compartilhamento de ideias e projetos entre crianças, educadores e famílias.
O essencial, diz Malaguzzi, é garantir “o direito de todas as crianças ao experimento, à criatividade e à expressão múltipla – do bloco de madeira ao mouse”.
Dos potenciais às armadilhas: tecnologia como trampolim, não como gaiola
Quando usada de forma ativa, colaborativa e situada, a tecnologia pode:
- Permitir registros coletivos de brincadeiras, experiências e descobertas;
- Facilitar investigações (buscar imagens de plantas para comparar espécimes colhidos no jardim da escola, mapear a origem de brincadeiras tradicionais brasileiras no Google Earth, produzir pequenos vídeos sobre brincadeiras da turma);
- Criar espaços de autoria (narrativas digitais escritas e ilustradas, animações, álbuns de fotografias das construções com blocos ou sucata);
- Apoiar adaptações para crianças com deficiência, desde que o recurso digital seja ponte para a participação real, e não substituto excludente do contato presencial.
Ao mesmo tempo, é importante nomear riscos e desafios: exposição passiva às telas, jogos solitários e repetitivos, aplicativos que apenas instituem comandos (e não criatividade), consumismo digital ou o uso indiscriminado de vídeos e jogos como “babá eletrônica”.
Piaget alertaria que o pensar crítico nasce da ação no mundo físico: crianças precisam correr, manipular objetos, construir, desmontar, interagir com o imprevisível. Malaguzzi complementa: “A mão é o cérebro para fora”.
Como equilibrar práticas e criar experiências potentes?
Educadores que surpreendem e inspiram têm apostado em práticas como:
- Uso de tablets e câmeras digitais para registrar invenções feitas em sala ou no pátio, permitindo retrospectivas, recontagem de histórias e valorização das produções infantis;
- Exploração conjunta de apps criativos (desenho digital, música, robótica educativa) em atividades coletivas e mediadas, buscando sempre um propósito de autoria, investigação ou partilha;
- Integração entre o virtual e o concreto: desenhar em aplicativos para depois construir em argila; pesquisar na internet ideias para brinquedos artesanais; fazer um stop motion das brincadeiras diárias;
- Documentação participativa: as crianças produzem, revisam e compartilham registros, ampliando o repertório de linguagens (como orienta Reggio Emilia).
Ao envolver a tecnologia nesses formatos, a escola cumpre o papel emancipador: oferece pluralidade de expressões, estimula descobertas e contribui para a construção do pensamento crítico em relação ao próprio “mundo digital”.
O adulto: referência, mediador e curador do universo tecnológico
Cabe à escola e à família:
- Definir limites claros para o uso de telas e priorizar sempre o brincar partilhado, multi-sensorial e ativo;
- Selecionar aplicativos e ferramentas com intencionalidade pedagógica: que estimulem autoria, colaboração, descoberta, e promovam conexões entre as brincadeiras digitais e a vida da criança;
- Ensinar como usar, pesquisar, criar e compartilhar, promovendo letramento digital crítico desde a infância;
- Avaliar constantemente o impacto do digital na rotina – e não hesitar em desativar, propor alternativas e retornar ao brincar tradicional sempre que necessário.
Como lembra Gandini, o verdadeiro desafio está em “integrar o novo sem perder o ancestral, valorizar a tela sem esquecer o tato, cultivar a criatividade nos universos físico e virtual”.
Conclusão: tecnologia que enriquece, não substitui a infância
O segredo não está em “permitir ou proibir” o digital, mas em criar oportunidades para que a tecnologia seja aliada – um trampolim para a imaginação, a cooperação e a expressão. Brincar, afinal, é o que faz a infância pulsar.
Tablets, aplicativos, câmeras e computadores são bem-vindos quando nos tornam mais criativos, conectados e críticos, sem jamais ocupar o lugar do faz de conta, do chão, da roda, da imaginação sem fio.
Referências
Froebel, F. (1981). The Education of Man.
Montessori, M. (2017). A Criança.
Piaget, J. (1998). O Julgamento Moral na Criança.
Vygotsky, L. S. (1991). A Formação Social da Mente.
Malaguzzi, L. (1999). As Cem Linguagens da Criança.
Edwards, C.; Gandini, L.; Forman, G. (1999). As Cem Linguagens da Criança.
BNCC (2017). Base Nacional Comum Curricular.